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domingo, 9 de maio de 2010

Dia das Mães


 por Fernando da Mota Lima – Sou uma mãe antiga, de um tempo cujos traços mais nítidos sumiram do horizonte do presente. Sou tão antiga, ou já tão irreal, que sou do tempo em que as mães casavam para sempre e ao casarem consagravam sua vida ao marido, aos filhos e à casa. Quando casei com Dudu o mundo da mulher e das suas relações com o mundo do homem parecia muito simples. Enquanto ele reinava na rua, ou no mundo, ela reinava na casa.

Dudu foi o único homem que conheci e amei na minha vida. Casamo-nos logo que se formou em medicina. Ele tinha então 23 anos de idade; eu, 17. Maria Vitória, minha filha mais jovem, diz agora, com certo travo de amargura, que ele é apenas uma fotografia pendurada num móvel da sala. Ela não sabe, ou é incapaz de compreender, que Dudu está vivo. Apesar de morto há cinco anos, sua presença é tão dominante na minha vida que nem consigo imaginá-lo morto. Agora que sou viúva e velha, ou estou na boa idade, como dizem por aí, tenho a solidão dos dias que me restam para conversar com Dudu. Nada faço na minha vida, nada sobre ela decido sem antes consultá-lo. É sobretudo na hora de dormir, quando faço minhas orações e peço a Deus pela vida dos meus filhos e netos, que me sento no sofá ao lado de Dudu e converso sobre nós dois, sobre nossos 60 anos de vida em comum. Um dia, tenho fé, deixarei de conversar apenas com o seu espírito, apenas com a memória que dele preservo, e irei a seu encontro. E assim a vida e o amor que aqui compartilhamos serão transpostos para uma eternidade sem incerteza ou sobressalto.

Faz dois anos que escolhi viver sozinha neste pequeno apartamento. Deixei a cobertura luxuosa que dividia com arthurzinho e Maria Vitória para viver solitária na minha concha de 60 m2. Ainda hoje meus filhos e demais parentes são incapazes de compreender minha decisão de ficar sozinha na velhice avançada. Somente Fernando, o amigo que me escreve e assim me recria como abstrata figura tecida com palavras, somente ele aparenta compreender-me. Minha explicação é simples: não quero morrer sem antes saber o que é ter meu próprio lugar, a pequena ilha onde preciso aprender a experiência da solidão antes da morte, da viagem última que me levará ao reencontro com Dudu.

Amanhã todos estarão aqui. Será um domingo de festa dentro da minha ilha que mal contém espaço para acolher tantos filhos, netos e outros parentes. Faz uns quinze dias que a televisão não fala de outra coisa que não seja o meu dia. Confesso que tudo isso me confunde a inteligência afeita apenas às práticas da vida simples que vivo. De repente me elevam a tantos modos de amor, a tantas provas de carinho, reconhecimento e importância que desacerto até o modo inconsciente de andar entre a sala e a cozinha, a TV e o telefone que amanhã tocará sem repouso.

Perplexa diante de tantas imagens sedutoras, erro estrangeira e anônima entre comerciais do shopping center e de um banco que nem conheço, entre geladeiras, móveis, farmácias, supermercados, lojas de roupas e jóias, sapatarias e locadoras, sociedades comerciais e beneficentes e toda uma infinita sucessão de lojas, bancos, mercados , comerciantes, publicitários… Não bastasse tanto, ouço tanta gente famosa falando de mim com amor, tanta gente que nunca me viu nem me conhece… Meu Deus, como guardar em mim meu anonimato humilde depois de tanta celebração, depois de tantas provas e promessas de amor? Como comprar tudo que me querem vender em meu nome, tudo que me vendem do que não preciso? Até parece que gerei meus filhos e eduquei-os apenas com o propósito de que no meu dia me dessem presente. O mais engraçado de tudo é que também meus netos me querem presentear. Como não têm renda própria, me pedem dinheiro para me dar presentes que ironicamente acabo pagando.

Maria Vitória virá com novo marido, que é já o quarto. Os filhos, saídos de amores tão desencontrados e instáveis, brigam tanto que preciso sempre testar a paciência e compreensão do meu amor de avó para apaziguá-los quando a meu lado. Ana Célia, a primogênita, separou-se do último marido, que foi o terceiro. Queixa-se sempre da solidão da casa, da ausência dos filhos já crescidos e soltos na vida. De repente, deu para morrer de amores por cachorros e parece andar mais equilibrada. Marluce, depois de tanto errar de amores, arranjou uma companheira com quem vive dentro de uma comunidade mística que criaram em Brasília.. E Arthurzinho, meu Deus, bebendo tanto que já precisou até fazer tratamento no AA… Tudo isso me confunde a cabeça e a imaginação, tudo isso desconcerta meu coração de mãe estrangeira num mundo tão desequilibrado.

Mas amanhã todos estarão aqui. Farão tanto barulho com televisão ligada, celular, videogame e telefonemas simultâneos, conversas desencontradas em meio ao ruído do apartamento… Meu Deus, confesso que preferiria a companhia silenciosa de Dudu. Com ele, na solidão da noite antes do sono, sinto-me afinal reconciliada comigo própria, com os valores e a atmosfera de um mundo apagado das trepidantes linhas do presente. Depois da festa, como sempre acontece, todos partirão e durante um ano viverei como uma ausência sem queixas na memória volúvel desses pedaços de mim nos quais já não me reconheço nem eles em mim se reconhecem. Não sei o que seria de mim e da minha velhice solitária, não houvesse o amor sempre fiel e presente de Dudu iluminando minha vida. Um dia viajarei afinal a seu encontro e então já não haverá dia das mães na vida de filhos e netos que gastam tanto tempo e dinheiro no shopping para me dar o que não preciso e enganar a falta do que tanto neles e em mim me dói: o sentido de um amor sem comércio.

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